1- O STA decidiu que o artigo 14.º da Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020, de 31 de Julho (um regulamento) - que estabelecia a “dispersão das concentrações superiores a 10 (nas áreas abrangidas pela situação de contingência) ou 20 (nas áreas abrangidas pela situação de alerta) pessoas” - não padecia de qualquer vício de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, dado que, entre outras razões, do site da OMS, "publicitado pelo Governo" e "pela comunicação social" resultava que: “Maintain at least 1 metre (3 feet) distance between yourself and others. Why? When someone coughs, sneezes, or speaks they spray small liquid droplets from their nose or mouth which may contain virus. If you are too close, you can breathe in the droplets, including the COVID-19 virus if the person has the disease. Avoid going to crowded places. Why? Where people come together in crowds, you are more likely to come into close contact with someone that has COVID-19 and it is more difficult to maintain physical distance of 1 metre (3 feet)”.)
Estas regras, que já foram modificadas, constituem para o STA "informação oficial da OMS" certificadora da necessidade de o Estado aprovar medidas restritivas de direitos fundamentais a fim de combater a pandemia. Daqui resultou que:
"III - A pandemia da COVID19 tem-se caracterizado, juridicamente, pelo surgimento de um Estado de Direito da emergência sanitária, no qual a “limitação” de direitos decorrente das medidas administrativas de combate e mitigação tem de ser avaliada com base nos seguintes pressupostos: i) na excepcionalidade e temporalidade das medidas adoptadas; ii) na existência de uma concreta cadeia ininterrupta de legitimação democrática que as suporta; e iii) na respectiva legitimação por via da internormatividade técnica internacional e da comparação e interdependência entre as medidas adoptadas pelos diversos Estados e Administrações.
IV - As medidas administrativas de gestão da pandemia reconduzem-se, também, a um direito administrativo do risco, no âmbito do qual a gestão do risco é prosseguida através da adopção de medidas que se inscrevem no núcleo da função administrativa e cuja proporcionalidade o tribunal sindica sem pôr em causa o núcleo da separação dos poderes."
2- Olvidou-se por completo as regras orgânicas e materiais previstas na CRP, violando-se o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, al. b).
No contexto enunciado, nada na CRP permite a subtração à regra da competência parlamentar no que respeita à aprovação de normas restritivas de direitos fundamentais.
O STA considerou existir fundamento bastante para se verificar restrição de direitos por via regulamentar por o artigo17.º da Lei de Vigilância em Saúde Pública (Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto) prever um poder regulamentar excecional permitindo a adoção de medidas excecionais: "1 - De acordo com o estipulado na base xx [hoje base 34] da Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto, o membro do Governo responsável pela área da saúde pode tomar medidas de excepção indispensáveis em caso de emergência em saúde pública, incluindo a restrição, a suspensão ou o encerramento de actividades ou a separação de pessoas que não estejam doentes, meios de transporte ou mercadorias, que tenham sido expostos, de forma a evitar a eventual disseminação da infecção ou contaminação."
A conjugação das duas leis como fundamento para a aprovação de habilitação para atos regulamentares restritivos de direitos constitucionais, juntamente com os artigos 8.º e seguintes da Lei n.º 27/2006 (Lei de Bases da Protecção Civil) não se funda na CRP.
O STA baseou-se ainda na legislação não parlamentar aprovada durante o estado de emergência para afirmar que: a dinâmica de uma situação de crise de saúde pública e com a adopção das medidas adequadas para a sua contenção e mitigação, sendo absolutamente impensável que as medidas necessárias para o efeito, mesmo as restritiva de direitos, liberdades e garantias, pudessem ser adoptadas por via legislativa parlamentar."
Não percebemos a razão desta afirmação. Durante o estado de emergência foi aprovada legislação parlamentar restritiva de direitos, liberdades e garantias. O que podia impedir a aprovação das normas da resolução seria uma votação parlamentar contrária. Esta é uma regra democrática com fundamento constitucional e respeitadora do princípio do Estado de Direito.
Também não se compreende a menção ao reforço da cadeia de legitimação democrática da medida e para a suficiência da densidade jusconstitucional de um Estado de Direito de Emergência Sanitária é a internormatividade técnica em que não podem deixar de se integrar a medida adoptada de proibição de ajuntamentos. A proibição de ajuntamentos seria materialmente compatível com o artigo 18.º da CRP desde que não abrangesse todo o tipo de manifestações ou reuniões públicas, mas impassível de figurar num regulamento de Conselho de Ministros.
A figura do Estado de Direito de Emergência Sanitária corresponde a uma criação ditada pelo temor de uma pandemia fornecendo ao Executivo as medidas mais ágeis e facilitadoras para restringir direitos fundamentais por via regulamentar.
Não pode considerar-se que este "direito de emergência administrativo" tenha base constitucional para fundamentar regulamentos fonte de restrições de direitos e aptos a superar o princípio da proporcionalidade.
Trata-se de um acórdão integrado no espírito dos tempos.